13 de outubro de 2011

TEXTOS DE LIVROS

Livro: Viagem a Ixtlan

de Carlos Castaneda

Disse que era uma vez um rapaz, um índio miserável, que vivia entre os brancos de uma cidade. Ele não tinha casa, nem parentes, nem amigos. Tinha ido para a cidade para fazer fortuna e só encontrara miséria e dor. De vez em quando, ganhava alguma coisa, trabalhando como um burro, mas aquilo mal dava para uma migalha; do contrário, ele tinha que mendigar ou roubar para poder comer.
Don Juan contou que, um dia, o rapaz foi à feira. Ele subia e descia as ruas meio tonto, os olhos loucos ao verem todas as coisas boas reunidas ali. Ficou tão alucinado que não viu onde pisava e terminou tropeçando numas cestas e caindo por cima de um velho.
Este carregava quatro cabaças enormes e tinha acabado de sentar-se para descansar e comer. Don Juan sorriu, com um ar matreiro e disse que o velho achou muito estranho que o rapaz tivesse tropeçado nele.
Não ficou zangado, e sim assombrado por que motivo aquele rapaz havia de cair em cima dele. O rapaz, ao contrário, ficou zangado e disse-lhe que saísse de seu caminho. Não estava nada preocupado com o significado daquele encontro.
Não tinha reparado que seus caminhos tinham realmente se cruzado.
... Quando o rapaz viu as cabaças achou que tinha encontrado comida para ele naquele dia.
Ajudou o velho a levantar-se e insistiu em ajudá-lo a carregar as cabaças pesadas. O velho disse que estava a caminho de sua casa nas montanhas e o rapaz insistiu em ir com ele, pelo menos parte do caminho.
O velho tomou o caminho das montanhas e, enquanto caminhavam deu ao rapaz parte da comida que tinha comprado na feira. O rapaz comeu à grande e, quando ficou satisfeito, reparou como as cabaças eram pesadas e agarrou-as com força.
Don Juan abriu os olhos e com um sorriso diabólico falou que o rapaz perguntou: “O que está levando nessas cabaças?” O velho não deu resposta, dizendo que ia levá-lo a um companheiro ou amigo que poderia aliviar as aflições dele e dar-lhe conselhos sábios a respeito das coisas do mundo..
Don Juan fez um gesto majestoso com as duas mãos e disse que o velho chamou o veado mais lindo que o rapaz já vira. O veado era tão manso que chegou perto dele, andando em volta. Era todo reluzente. O rapaz estava boquiaberto e viu logo que se tratava de um “veado espírito”. O Velho então disse que , se ele quisesse ter aquele amigo e sua sabedoria, bastava largar as cabaças.
O sorriso de Don Juan retratava a ambição; disse que os desejos mesquinhos do rapaz foram espicaçados ao ouvir aquele pedido. Os olhos de Don Juan fizeram-se miúdos e diabólicos, ao pronunciar a pergunta do rapaz: “O que é que leva nessas quatro cabaças enormes?” Don Juan disse que o velho serenamente respondeu que estava carregando comida: pinole e água. Ele parou para contar a história e andou em círculos mais duas vezes. Eu não sabia o que estava fazendo. Mas parece que era parte da história. O círculo parecia retratar os pensamentos do rapaz.
Don Juan disse que, naturalmente, o rapaz não acreditou em nada daquilo. Calculou que, se o velho, que obviamente era um mágico, estava disposto a dar um “veado espírito”por suas cabaças, então essas deviam estar cheias de um poder inacreditável.
Don Juan tornou a fazer uma careta e um sorriso diabólico e disse que o rapaz tinha declarado que queria ficar com as cabaças. Fez-se uma longa pausa, que pareceu marcar o fim da história. Dom Juan ficou calado e , no entanto eu tinha certeza de que ele queria que eu lhe perguntasse a respeito , e eu o fiz.
- O que aconteceu com o rapaz?
- Ele ficou com as cabaças - respondeu ele com um sorriso de satisfação.
Outra longa pausa. Eu ri. Pensei que aquela tinha sido bem uma história “de índio”. Os olhos de Don Juan brilharam quando ele me sorriu. Tinha um ar de inocência. Começou a rir aos poucos e me perguntou:
- Não quer saber das cabaças?
- Claro que quero saber. Pensei que era o fim da história.
- Ah ,não - disse ele, com olhar malicioso - O rapaz pegou as cabaças e correu para um lugar isolado e as abriu.
- O que encontrou? - perguntei
Don Juan olhou para mim e tive a impressão que estava ciente de minha ginástica mental. Ele sacudiu a cabeça e riu.
- E, então, - insisti - as cabaças estavam vazias?
- Só havia comida e água dentro das cabaças - respondeu.
- E o rapaz, num acesso de fúria, despedaçou-as de encontro às pedras.
Falei que a reação dele era muito natural... qualquer pessoa na situação dele teria feito o mesmo. A resposta de Dom Juan foi que o rapaz era um tolo, que não sabia o que buscava. Não tinha conhecimento de que era o “poder”, de modo que não podia dizer se havia encontrado ou não. Não assumira a responsabilidade por sua decisão e, portanto, ficara com raiva de seu engano. Esperava ganhar alguma coisa, e não ganhou nada. Dom Juan raciocinou que, se eu fosse o tal rapaz e tivesse seguido minhas inclinações, eu teria acabado zangado e com remorsos e, sem dúvida, passaria o resto da vida com pena de mim mesmo e daquilo que tinha perdido.
Depois, explicou o procedimento do velho. Espertamente, tinha alimentado o rapaz, para dar-lhe “a audácia da barriga cheia” e assim o rapaz, só encontrando comida nas cabaças, arrrebentou-as num acesso de fúria.
- Se ele tivesse consciência de sua decisão e assumisse a responsabilidade por ela - falou Dom Juan - teria tomado a comida e ficado mais do que satisfeito com ela. E talvez até tivesse compreendido que aquela comida também era poder.

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