- A rede informal de Ódio –
A Cabala da Inveja
Nilton Bonder
Editora Imago
A “fofoca”, ou a transmissão intencional de informações, é uma das redes mais importantes de preservação e transporte de rancor. Sua disseminação é tão corriqueira e rotineira que novamente faz-se necessário desmontar sua estrutura e visualiza-la à luz dos diferentes mundos.
A tradição judaica classifica em três diferentes formas as expressões que a “fofoca” assume nos mundos perceptíveis – o “repassador de histórias” (rechil), a má-língua (lashon há –rá) e o caluniador( há-motsi shem rá). O último exemplifica o caso simples de alguém que propaga uma mentira em relação a outra pessoa. A “má-língua”, por sua vez, é a atitude do indivíduo que transmite uma informação verdadeira, porém com a única intenção de difamar. Já o primeiro caso, representado pelo “repassador de histórias” ou, como prefere o talmude, “sombra da má-língua”, trata-se do repasse falsamente involuntário de informações comprometidas com interesses escusos.
Maimônides, rabino do século XII, nos ajuda a compreender as classificações de “má-língua” e “repassador de histórias”:
Uma pessoa de “má-língua” é aquela que, quando em companhia de outros, diz: “Fulano fez isto e aquilo” ou “seus ancestrais foram este ou aquele”.
Já a “sombra da má-língua” tem o seguinte discurso: “Quem diria que fulano seria o que ele é hoje” ou “ Fica quieto em relação a Fulano, não quero nem me lembrar do que aconteceu...” e então relata. É repreensível a atitude de fingir não se dar conta de que o que diz é maldoso.
Se pudéssemos portanto, graduar estes níveis de manipulação de informação de acordo com os diferentes mundos, encontraríamos uma situação inversa àquela que nos pareceria óbvia. Levando-se em conta a sutileza destas diferentes formas de intriga, a tradição judaica nos aponta como as mais nociva das “fofocas” justamente o repasse de histórias (rechil), seguido então da má-língua e, por último, da calúnia.
Na verdade, tanto a calúnia quanto o caso da má-língua, há uma mesma agravante, no sentido restrito da “fofoca”. Em ambos, se assume o desejo de difamar a quem se julga “merecer ser difamado”. Tanto o caluniador quanto o má-língua alimentam-se da justificativa de que não pode se deixar passar a oportunidade de denunciar aqueles que agem erroneamente. São portanto, do ponto de vista da conservação de um ódio, instrumentos muito parecidos. Pareceria, á primeira vista, que a diferença da natureza do crime que infringem – um mentindo e o outro revelando a verdade – definiria o crime de calúnia como sendo de maior gravidade. Porém, não é bem assim. É evidente que o caluniador é o responsável pelos danos e conseqüências de seus atos no que se refere a programar uma mentira, mas a destrutividade de sua malícia é menor do que a de uma má-língua. O caluniador está na categoria de nada. Sua mentira é a saída e o recurso que reabilitará aquele que é caluniado. Isto porque, sendo desmascarada a sua mentira, a reputação do caluniado será restaurada imediatamente. Esta é a razão pela qual, no que tange à malícia, o intento do caluniador é infinitamente menos sutil do que o da má-língua.
A má língua se utiliza da verdade como um instrumento para agravar uma intriga, sofisticando sua malícia. No momento em que aquilo que se diz pode ser verificado, o intuito subjetivo da intriga tem um potencial maior de propagar o rancor. Ao mesmo tempo, em relação ao “repassador de histórias”, a má-língua assume a posição de tolo. Seu desejo de difamar também é neutralizável por qualquer um que tenha um mínimo senso crítico e que consiga questionar quais os interesses que teriam levado alguém a relatar tais fatos a outras pessoas.
O repassador de histórias é o nosso grande vilão. Sua natureza enquadra-se na dimensão do perverso. Usando-se de uma falsa imparcialidade, o repassador de histórias dissimula seus interesses. Passa adiante fatos que deixa para seus ouvintes julgarem. Porém, a conveniência de repassar a informação num dado momento e de uma determinada forma contém elementos potencialmente muito propícios para a manutenção de ódios e rixas. Desta maneira, o repassador de histórias deixa de ser suspeito de possuir qualquer interesse em relação á sua informação. Este elemento subliminar faz com que o ouvinte da “fofoca” assimile a informação infectada com rancor e acredite, depois de decodificá-la, que é seu, propriamente seu, o julgamento que, na verdade, já estava embutido na informação.
O repassador de histórias representa a mais nociva e endêmica forma de transporte e preservação de rancor, pois a prática de tal hábito se estende á grande maioria das pessoas, que, certamente, desconhecem seu poder destrutivo. Não é por acaso que, no âmago do Pentateuco, na descrição das mais sofisticadas formas de civilidade e sapiência que pode um indivíduo atingir, recomenda-se: “ Não andarás repassando histórias entre seu povo” (Lev.19:16). Este é o trecho conhecido como Kedoshim (sagrados), onde as recomendações mais sutis para se almejar uma vida de qualidade são listadas.
A tradição rabínica reconhece também que a “fofoca” depende daquele que se presta a ouvi-la. Desta forma, alerta-nos para o fato de que devemos ser cuidadosos não apenas para não agirmos levianamente espalhando “histórias”, como também educando-nos para não ouvi-las.
Saiba que aquele que escuta uma afirmação maldosa é tão perverso quanto aquele que a transmite. O simples fato de lhe dar atenção permite àqueles que estão próximos pensar: “ Fulano ouviu o que lhe diziam e concordou, portanto; o que dizem deve ser verdade”.
Até mesmo se o ouvinte apenas volta seu rosto em direção ao “fofoqueiro” e dá a impressão de lhe estar prestando atenção ajuda a propagar a intriga e encoraja-o a prosseguir coma sua malícia ( Shaarei Tshuva, s.3)o de lhe estar prestando atenç seu rosto em direçto; o que dizem deve ser veradriga tem um potencial maior de propagar o rancor
Este dado é de suma importância para que possamos identificar a estrutura da “fofoca”. Seu meio de propagação é uma rede que depende também da disponibilidade de seus ouvintes para desencadear processos de preservação de rancor e ódio. Todos, uns menos, outros mais, fazemos parte desta rede informal, cujos custos à paz mundial são incalculáveis.
Conseguir romper com esta rede organizada requer sabedoria e disciplina. Deve-se, acima de tudo, perceber que a sua eficácia principal está nas artimanhas sutis com que desvia energia de nosso discurso e comportamento, logrando-nos constantemente. Somos, então, feitos hospedeiros, receptáculos de rancor. Os embustes da intriga não estão na essência do que é dito, mas na forma com que é transmitida. Por isso, somos alertados de que mesmo a lisonja e o elogio podem conter tanto veneno quanto a blasfêmia.
Continua...
Bibliografia:
...O Rabi Israel Meir tentou esboçar um breve manual de normas para podermos filtrar a poluição de rancores e malícias contidos no desejo de criticar alguém. Foi a seguinte fórmula por ele descrita para termos a certeza de que nossas intenções são construtivas:
1/ As evidências da desonestidade ou da falta cometida devem ser obtidas pela própria pessoa que critica e não através de rumores que tenha ouvido.
2/ A pessoa que critica deve ser cautelosa e refletir sobre o assunto intensamente, para poder certificar-se de que se trata de um caso em que houve realmente uma atitude incorreta.
3/ Deve então censurar a pessoa que cometeu o erro reservadamente, sem alarde e de maneira a não ameaça-la, demonstrando expectativa de que modifique a sua conduta. Se isto não ocorrer, então sim, poderá tornar o caso público.
4/ Não deve, no entanto, fazer a ofensa parecer maior do que é.
5/ Deve tentar entender seus próprios motivos e certificar-se de que não está censurando o outro por razões pessoais, mas que o faz de boa fé e com o objetivo de ser construtivo.
6/ Se existir qualquer outra forma de evitar a difamação do outro, deve recorrer a tal método primeiro.
7/ Como resultado de sua ação, não deve trazer ao indivíduo criticado punição maior do que aquela a ele destinada por uma corte, caso fosse julgado. Além de tudo isso, uma pessoa que publicamente difama alguém deve ela mesma ser honesta e não culpada do mesmo tipo de crimes ou faltas que censura no outro... Deve também certificar-se de que as pessoas para quem denuncia a falta não sejam elas mesmas culpadas de indulgência em práticas similares à que é criticada.
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